Mais de 400 lideranças indígenas convergiram em Brasília para manifestar uma oposição profunda à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48, que ameaça desmantelar seus direitos territoriais garantidos pela Constituição e impõe o critério do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Esta mobilização integra uma campanha nacional conduzida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), junto às suas organizações regionais de base, com o apoio do Conselho Indígena Missionário - CIMI, e, nesta ocasião, contou com a significativa presença de caciques, cacicas e lideranças do povo Mēbêngôkre. Composta por mais de 153 integrantes e organizada em torno do Instituto Raoni, Instituto Kabu e Associação Floresta Protegida, essa delegação expressa a resistência de seus povos contra o que chamam de "PEC da Morte". A PEC 48, ao restringir o reconhecimento de terras indígenas às ocupadas até 5 de outubro de 1988, representa um retrocesso profundo que não só ameaça a segurança jurídica, mas também coloca em risco a continuidade física e cultural dos povos originários.
A mobilização em Brasília buscou destacar, para o Brasil e o mundo, os graves riscos representados pela PEC 48 e por outras propostas legislativas que enfraquecem os direitos territoriais dos povos indígenas. Além da PEC 48, que tenta estabelecer o marco temporal como critério para a demarcação, restringindo o reconhecimento de terras indígenas àquelas ocupadas até 5 de outubro de 1988, o movimento indígena também se opõe à PEC 132/2015, à PEC 36/2024 e à Lei 14.701/2023. A PEC 132/2015, por exemplo, prevê a possibilidade de atividades econômicas exploratórias em terras indígenas, permitindo a mineração e o agronegócio nesses territórios. Já a PEC 36/2024 propõe mudanças na demarcação de terras indígenas, delegando parte desse processo ao Congresso Nacional, o que submete os direitos indígenas aos interesses políticos de grupos ruralistas, inimigos históricos dos direitos dos povos indígenas.
Além disso, a Lei 14.701/2023, mesmo após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter considerado o marco temporal inconstitucional, restabeleceu essa tese, criando insegurança jurídica e ameaçando os direitos garantidos pela Constituição. A última marcha, realizada em 30 de outubro, culminou em uma caminhada simbólica do Museu Nacional ao Congresso Nacional, onde centenas de indígenas se reuniram para exigir que suas vozes fossem ouvidas. Embora a PEC 48 não tenha sido pautada no dia, frustrando as esperanças de um debate amplo, o movimento indígena encarou o adiamento como uma razão para intensificar a pressão. Eles conclamam a sociedade civil a se unir nessa causa, reforçando a defesa dos direitos fundamentais e da preservação dos territórios ancestrais.
Para as lideranças indígenas, a PEC 48 representa muito mais do que uma disputa territorial; ela é uma questão de vida ou morte. Territórios indígenas são essenciais para a sobrevivência física e cultural dos povos que os habitam. Além de prover os recursos naturais necessários para sua subsistência, como caça, pesca e coleta de plantas medicinais, essas terras têm valor espiritual e simbólico. Para os Mēbêngôkre, como para muitos outros povos, a terra é um espaço sagrado onde descansam seus ancestrais e onde se desenrola a continuidade de suas tradições. A PEC 48, ao impor um marco temporal que desconsidera a história de expulsões forçadas e violências contra os povos indígenas, representa uma tentativa de esvaziar o direito originário dessas comunidades e submete-los à lógica econômica e fundiária de uma sociedade majoritariamente não-indígena.
Ao limitar o reconhecimento das terras indígenas, a PEC 48 ameaça extinguir modos de vida que datam de tempos imemoriais e que são indispensáveis à diversidade cultural do Brasil. A imposição de um limite temporal não leva em conta que muitos povos foram removidos à força de suas terras ao longo dos séculos e, sobretudo, durante a ditadura militar, que promoveu ocupações e processos de integração forçada. Para as lideranças, essa PEC não apenas mina os direitos estabelecidos em 1988, mas representa uma tentativa de negar o passado de violência e exclusão que o Estado brasileiro impôs aos povos originários.
A proposta do marco temporal, que restringe a ocupação indígena à data de promulgação da Constituição de 1988, é justificada pelos seus proponentes como uma forma de segurança jurídica para o setor agrícola. O senador Hiran Gonçalves (PP-RR), autor da PEC, afirma que a medida beneficiaria produtores rurais, oferecendo um critério objetivo para a ocupação de terras. No entanto, para as lideranças indígenas e organizações de direitos humanos, esse argumento ignora as complexas dinâmicas históricas e culturais que envolvem a relação dos povos originários com a terra.
A tese do marco temporal foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2023, após ampla análise dos direitos originários e das normas constitucionais. No entanto, a aprovação da Lei 14.701/2023 pelo Congresso, que reintroduziu o marco temporal, gerou um clima de insegurança jurídica e desencadeou uma série de mobilizações contra a lei. A PEC 48, visa tornar permanente essa tese e legitimá-la como critério para a demarcação de terras indígenas, promovendo, na visão dos indígenas, um processo de desconstituição dos direitos assegurados pela Carta Magna.
A visão de que as terras indígenas seriam melhor aproveitadas se liberadas para o agronegócio e a mineração parte de uma lógica econômica que ignora os impactos devastadores dessas atividades sobre o meio ambiente, as comunidades indígenas e o planeta. Ao limitar o reconhecimento das terras, a PEC 48 perpetua uma visão colonizadora, que vê os territórios indígenas como áreas improdutivas e ignora a riqueza cultural e ambiental desses espaços. Para os povos indígenas, o território não é apenas um recurso, mas a base de sua existência e de suas práticas de vida sustentáveis.
A mobilização contra o marco temporal em Brasília contou com uma cobertura midiática potente realizada pelos Cineastas Mēbêngôkre do Coletivo Beture Karazim Kayapó, incluindo Beptemexti Kayapó, Nhakture Kayapó e Selena Kayapó. Esses cineastas documentaram a luta de seus povos de maneira autêntica e engajada, registrando desde os momentos de organização e articulação até as marchas e discursos das lideranças indígenas em defesa de seus direitos territoriais. Com um olhar que reflete a cosmovisão Mēbêngôkre e a urgência de preservar os territórios ancestrais, o coletivo capturou a mobilização não apenas como um ato de resistência, mas como um movimento de reafirmação da identidade cultural e da autonomia dos povos originários. A presença dos cineastas garantiu que a cobertura fosse feita a partir da própria perspectiva indígena, ampliando a visibilidade da luta e fortalecendo a voz dos Mēbêngôkre na defesa dos direitos constitucionais e do meio ambiente.
Nesta terça-feira, 30 de outubro de 2024, lideranças da Aticulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib, representando uma diversidade de povos e biomas, entregaram aos Três Poderes do Estado Brasileiro a carta "Nossa Terra, Nossa Vida". O documento denuncia os ataques contínuos e sistemáticos aos direitos constitucionais e aos territórios ancestrais indígenas, e foi elaborado como parte da Mobilização Nacional Indígena em Brasília. O momento é descrito pelas lideranças como um ponto crucial na luta pela preservação de seus direitos, garantidos pela Constituição Federal de 1988, especialmente o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas. Na carta, os indígenas ressaltam a urgência de se garantir a proteção e a demarcação dessas terras, ameaçadas por medidas legislativas e econômicas que promovem retrocessos.
A carta lista 25 reivindicações destinadas aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, expondo demandas específicas para cada esfera. Ao Executivo, os indígenas pedem ações concretas para a demarcação imediata de terras indígenas, incluindo territórios como Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, e Xucuru Kariri, em Alagoas. Também exigem o fortalecimento de órgãos essenciais, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas, que precisam de recursos e estrutura para garantir a proteção dos territórios e a implementação de políticas públicas voltadas aos povos originários. Outro ponto destacado é a necessidade de políticas específicas para combater a crescente violência contra lideranças indígenas. Além disso, solicitam a criação de um sistema de rastreabilidade para monitorar a produção de commodities que afeta as terras indígenas, visando prevenir o desmatamento e as violações de direitos associadas à expansão agropecuária e minerária.
No Legislativo, as lideranças demandam o arquivamento definitivo de propostas de emenda constitucional, como a PEC 48/2023, que busca institucionalizar a tese do marco temporal, restringindo o direito indígena às terras ocupadas antes de 1988. A carta inclui a oposição a outras PECs igualmente prejudiciais, como a PEC 132/2015, que abre terras indígenas para exploração econômica, e a PEC 36/2024, que transfere o poder de demarcação ao Congresso Nacional, sujeitando os direitos indígenas a interesses políticos. As lideranças clamam também pela aprovação de projetos de lei que promovam a proteção ambiental e fortaleçam políticas de saúde e educação voltadas para a população indígena. Entre as prioridades legislativas está a ratificação do Acordo de Escazú, que visa aumentar a transparência e garantir a participação social nas decisões ambientais, essencial para fortalecer a luta indígena por direitos e proteger o meio ambiente.
Ao Judiciário, as lideranças indígenas apresentam reivindicações para que o STF reconheça a inconstitucionalidade da Lei nº 14.701/2023, que reincorpora a tese do marco temporal, contrária à decisão de 2023 do próprio Supremo que já a havia declarado inválida. Exigem o encerramento da Mesa de Conciliação do STF, que tem sido criticada por legitimar negociações sobre direitos constitucionais indígenas inalienáveis. Além disso, pedem o julgamento definitivo do Recurso Extraordinário do Povo Xokleng, que reafirma o direito indígena ao usufruto exclusivo de suas terras, e que é considerado um marco legal na proteção dos territórios originários.
A carta "Nossa Terra, Nossa Vida" simboliza uma convocação à sociedade brasileira para defender a preservação dos territórios indígenas como um direito fundamental e como um pilar para a sustentabilidade e a justiça social. Ela denuncia o desrespeito ao pacto constitucional e reflete a determinação dos povos indígenas em resistir, não só pela defesa de seus direitos, mas também pela preservação do meio ambiente e pela construção de um país mais justo e democrático.
A importância das terras indígenas para a preservação ambiental é reconhecida globalmente. Segundo dados científicos, esses territórios preservam 80% da biodiversidade brasileira e apresentam as menores taxas de desmatamento. Estudos apontam que as práticas indígenas de manejo sustentável são eficazes na manutenção da biodiversidade e na proteção dos recursos naturais, sendo que de todas as àreas protegidas que existem, as terras indígenas são as menos desmatadas e mais preservadas. Em um contexto de crise climática, as terras indígenas surgem como uma barreira crucial contra o avanço do desmatamento e a degradação ambiental.
A PEC 48 e outras propostas que visam abrir terras indígenas para atividades como o agronegócio, a mineração e o garimpo ilegal ameaçam diretamente essa proteção. Para as lideranças indígenas, a aprovação dessas medidas traria consequências irreversíveis não apenas para os povos originários, mas para toda a sociedade. A destruição de áreas de preservação levaria ao aumento dos eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, impactando a vida de milhões de pessoas.
A Mesa de Conciliação do STF, instituída pelo ministro Gilmar Mendes para discutir a Lei nº 14.701/2023, tornou-se um dos pontos mais controversos e criticados pelas lideranças indígenas. Desde o início, essa mesa foi vista com grande desconfiança, pois sua própria criação sugere que direitos indígenas, que são originários e inalienáveis, poderiam ser objeto de negociação. Para os povos indígenas, essa postura contradiz diretamente a decisão de 2023 do próprio STF, que já havia declarado inconstitucional a tese do marco temporal, reafirmando a garantia dos direitos indígenas conforme o artigo 231 da Constituição. No entanto, ao reabrir o debate sobre o marco temporal, a mesa gera insegurança jurídica, lançando dúvidas sobre a solidez das proteções legais conquistadas pelos povos originários.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a principal organização de representação indígena, retirou-se das negociações como forma de protesto, apontando o desequilíbrio e a falta de legitimidade do processo. Para a Apib, a composição da mesa, dominada por representantes de interesses ruralistas que são maioria nas votações, compromete a equidade do processo e deslegitima qualquer tentativa de conciliação. Esse predomínio ruralista favorece pautas que buscam flexibilizar o uso das terras indígenas para fins econômicos, refletindo uma visão que privilegia interesses financeiros em detrimento da preservação dos direitos e da integridade dos territórios indígenas.
Além disso, a mesa propôs a indenização de invasores de terras indígenas não apenas pelas benfeitorias realizadas de boa fé, como prevê a legislação, mas também pela terra nua – algo que é considerado ilegal e viola os direitos constitucionais dos povos indígenas ao usufruto exclusivo de seus territórios. A proposta levanta uma questão preocupante: por que o Estado deveria remunerar invasores por terras que pertencem aos indígenas e cujas ocupações foram realizadas de forma irregular? Para as lideranças indígenas, essa indenização amplia o desrespeito aos direitos originários e legaliza o esbulho das terras tradicionais, recompensando ações que vão contra a Constituição.
"Direitos fundamentais não se negociam, nem se conciliam; se garantem e se implementam", declarara Dinamã Tuxá, coordenador da Apib, em uma resposta direta ao Estado. A existência da Mesa de Conciliação representa uma tentativa de instrumentalizar o sistema jurídico em favor de interesses econômicos que buscam explorar os recursos naturais das terras indígenas sem respeitar o eu direito ao usufruto exclusivo. Na visão das lideranças, ao desviar-se de suas obrigações constitucionais e tentar conciliar direitos inalienáveis com demandas econômicas predatórias, o Estado se compromete com uma postura que subverte a justiça e expõe os povos indígenas a uma vulnerabilidade ainda maior.
O próprio conceito de “conciliação” neste contexto é visto como falho e inapropriado. Submeter direitos indígenas à negociação com setores econômicos que, ao longo da história, promovem o desmatamento e a apropriação de terras indígenas é uma afronta ao Estado de Direito. O desequilíbrio nas negociações e a proposta de indenização irregular reforçam a percepção de que o processo está sendo manipulado para atender a interesses que desrespeitam os direitos constitucionais dos povos originários.
Para as lideranças indígenas, a Mesa de Conciliação não é um mecanismo de proteção, mas sim um instrumento que obscurece a justiça e compromete o Estado em suas responsabilidades. Elas reforçam a necessidade de que o STF respeite suas próprias decisões e mantenha a proteção incondicional dos direitos indígenas. No lugar de propor concessões que recompensem invasões irregulares, o Estado deve reafirmar o compromisso com a Constituição e a proteção dos territórios indígenas, garantindo que os direitos fundamentais dos povos originários sejam mantidos e respeitados.
Outro aspecto alarmante levantado pelo movimento indígena é o aumento da violência contra líderes que defendem suas terras. O documento entregue aos Três Poderes durante a marcha de 30 de outubro, denuncia assassinatos como os de Majé Nega Pataxó Hã Hã Hãe, na Bahia, e de Neri Ramos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Relatos de pulverização de agrotóxicos contra aldeias Avá-Guarani, no Paraná, foram descritos como uma forma de “arma química” usada para expulsar indígenas de suas terras.
Para as lideranças indígenas, essa violência representa um verdadeiro “genocídio legislado” – uma estratégia deliberada para expulsar os povos originários de suas terras em benefício de empreendimentos econômicos. A impunidade que cerca esses crimes aprofunda o sentimento de vulnerabilidade e abandono nas comunidades, evidenciando uma forma de injustiça histórica que o Estado perpetua ao não proteger aqueles que são os guardiões originários da terra. Essa realidade reforça a urgência de uma resposta firme e de políticas que assegurem a proteção integral dos direitos indígenas e respeitem sua existência e relação ancestral com o território.
No encerramento de seu documento, as lideranças indígenas foram enfáticas: "Sem demarcação, não há democracia!" Essa frase, carregada de significado, ecoa uma luta histórica dos povos originários e sublinha que o direito à terra antecede o próprio Estado brasileiro. Para eles, a defesa dos territórios indígenas é muito mais do que uma reivindicação territorial; é um imperativo de justiça, de preservação ambiental e de proteção a um modo de vida que sustenta valores essenciais para toda a sociedade.
A mobilização em Brasília revela que a luta indígena transcende fronteiras geográficas e culturais, situando-se no cerne de um movimento pela justiça social, pela sustentabilidade e pelo futuro de todos os brasileiros. Os povos indígenas, guardiões milenares da biodiversidade e do equilíbrio ecológico, lutam não apenas por si mesmos, mas por uma convivência harmoniosa com a terra, que respeite e valorize a vida em todas as suas formas. Diante das ameaças da PEC 48 e de outras propostas regressivas, as lideranças reafirmam seu compromisso inabalável com a resistência e fazem um chamado urgente à sociedade brasileira: que todos se unam na defesa dos direitos fundamentais dos povos originários, pois esta é, acima de tudo, uma luta pela dignidade, pela democracia e por um futuro compartilhado.
Carta da APIB para os três poderes: https://apiboficial.org/files/2024/10/Carta-Pol%C3%ADtica-Mobiliza%C3%A7%C3%A3o-Nacional-Ind%C3%ADgena.pdf