Levante pela Terra

Mais de 100 Mẽbêngôkre-Kayapó estiveram em Brasília participando do Levante pela Terra em aliança com o movimento indígena nacional para exigir a extinção das pautas anti-indígena no congresso.


O Levante pela Terra é uma iniciativa espontânea de diferentes povos indígenas do Brasil que esteve mobilizada em Brasília durante o mês de junho e que contou com a organização geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB. Cerca de 1,2 mil indígenas, representando as populações de cerca de 50 povos distintos, estiveram se manifestando na capital contra iniciativas legislativas que ameaçam seus direitos fundamentais, coletivos e sobretudo territoriais. Todos os povos indígenas de diferentes regiões do país, até mesmo os isolados, se encontram com seu direito à terra gravemente ameaçado, tampouco só aqueles que ainda não tem as suas terras demarcadas, mas até mesmo os que já tem suas terras homologadas. É por isso que 104 lideranças Mẽbêngôkre-Kayapó estiveram no Levante pela Terra do 14 ao 23 de Junho.


Ô-é Paiakan Kaiapó na marcha contra o PL 490. Foto: Raissa Azeredo


Com uma audiência pública na Comissão de Legislação Participativa agendada para o dia 15 de Junho, para pedir apoio dos parlamentares pela extinção da pauta anti-indígena no congresso, a deleção dos Mẽbêngôkre-Kayapó associados ao Instituto Raoni, Instituto Kabu e Associação Floresta Protegida participou de diversas atividades na capital, com a cobertura midiática realizada pelo Coletivo Beture em parceria com os demais coletivos de comunicação de diferentes organizações que participaram da cobertura participativa do Levante pela Terra, entre eles os Comunicadores da Rede Xingu+. A delegação apoiou as pautas de defesa do direito à terra para todos os povos indígenas e participaram dos atos convocados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, APIB, entendendo o direito originário à terra como concernente a todos os povos indígenas do país.



Delegação Mẽbêngôkre no dia da chegada. Foto: Kubekàkre/Coletivo Beture


As ameaças desse pacote de maldade, longe de ser meramente abstratas, nem tampouco apenas aos direitos territoriais (o que por si só não é pouco), mas, de acordo com os participantes do Levante, um verdadeiro atentado contra a própria vida individual e coletiva dos povos indígenas, que só existem como parte integrante e fundamental da terra. Analisadas em conjunto, as diferentes medidas legislativas em pauta, ou prestes a estar, são um verdadeiro genocídio e etnocídio. Os povos indígenas dependem da terra, não apenas para sobreviver e tirar o seu sustento, mas para relacionar-se espiritualmente, seguir suas tradições, tal como reconhecido na Constituição Federal no primeiro caput do artigo 231: "§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.". No mesmo sentido, ao considerar o desmonte da política pública de proteção territorial que a União tem o dever de cumprir, pode-se dizer que as ameaças a existência dos indígenas e suas terras são oriundas de diversas frentes para além das iniciativas legislativas, com isso, atenta-se também contra a integridade de áreas protegidas e territórios indígenas que sofrem intensa pressão de atividades produtivas predatórias.


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Pacote de Maldade


Entre as principais iniciativas que estiveram em pauta neste período vale destacar neste momento o PL490, o PL 191, o PDL 177, A Instrução Normativa Conjunta Nº1 da Funai e do Ibama de 22 de Fevereiro de 2021, o PL 2.633 e o Marco Temporal.


O PL 490 pretende transformar profundamente os procedimentos administrativos de demarcação de terra no país, transferindo a responsabilidade que é do executivo, com a Funai, para o legislativo, o que significa colocar os direitos territoriais originários dos povos indígenas nas mãos da bancada majoritária que é a ruralista, responsável pela verdadeira concentração fundiária do país e historicamente adversária dos direitos territoriais originários indígenas e dos povos indígenas em geral. A demarcação e proteção de terras indígenas é uma política de Estado, dever da União, não é algo passível de ser definido pela vontade de qualquer parlamentar ou governo de turno. Este PL se opõe à ampliação de reservas indígenas já existentes e também pretende incorporar a tese do Marco Temporal, especificada mais adiante.


O PL 191 visa anular o direito ao usufruto exclusivo às riquezas existentes nas terras dos povos indígenas e liberar as Terras Indígenas para diferentes empreendimentos predatórios, como garimpo, mineração, petróleo, gás e outras iniciativas da grande indústria extrativista. O PL, apelidado de Devastação, favorece todo tipo de empreendimentos predatórios e elimina direitos fundamentais indígenas, tais como o a consulta, o poder de veto e o usufruto exclusivo das riquezas naturais em seus territórios.


O PDL 177 ameaça o direito a consulta livre, prévia e informada, ao autorizar o presidente da república a denunciar e retirar a adesão do Brasil à Convenção 169 da OIT, um dos marcos legais internacionais mais importantes para os Povos Indígenas.


A Instrução Normativa N1 da Funai e do Ibama é uma tentativa de simplificar o licenciamento para atividades produtivas que sejam de organizações maioritariamente indígenas, mas que na prática pode isentar os verdadeiros produtores da obrigatoriedade de respeitar uma série de direitos ao contar com o respaldo de uma organização mista para poder operar. Essas organizações, na prática podem ser controladas pelos que atualmente são responsáveis pela exploração predatória e ilegal das riquezas existentes nas terras indígenas, cujo usufruto deveria ser dos índios. Esta medida beneficia grandes produtores agrícolas, entre outros atores poderosos da economia hegemônica das regiões circundantes aos territórios indígenas, ávidos pela exploração predatória das riquezas dessas terras.


O PL 2.633 é conhecido como o da grilagem, substituiu a MP 910 quando caducou e promove uma regularização geral de terras, induzindo roubo de terras públicas, desmatamento em massa e fragiliza os controles de ocupação da Amazônia.


O Marco Temporal


Tese que consiste na ideia de que somente aqueles povos que estiveram na posse ou em juízo em disputa por suas terras de ocupação tradicional na data da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 teriam direito a sua efetiva demarcação. O Marco Temporal, se for adotado, poderá invisibilizar todo o histórico de violência que despejou muitos povos indígenas de seus territórios de ocupação tradicional ao longo da história da colonização até a atualidade, inclusive durante a ditadura militar.


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No primeiro dia de acampamento, no 14 de Junho, houve uma marcha partindo do Teatro Nacional rumo ao STF, onde tramita um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina contra o povo Xokleng, que se encontra em luta pela demarcação da sua terra em Santa Catarina, a TI Ibirama-Laklanõ. Ainda que a área já tenha sido drasticamente reduzida ao longo do século XX por um empreendimento hidrelétrico e diferentes invasões e medidas governamentais, a Terra Indígena já foi reconhecida formalmente pela Funai e pelo Ministério da Justiça, em 2003.


Foto: Kubekàkre/Coletivo


O caso do Recurso Extraordinário RE-RG 1.017.365 adquiriu caráter de Repercussão Geral no STF, o que faz com que o julgamento do caso Xokleng tenha como consequência a definição ou descarte do marco temporal como parâmetro para demarcação de todas as terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário. O julgamento é considerado o mais importante do século para os povos indígenas, considerando o impacto profundo que pode ter em todos os processos de demarcação de terra vigentes. A maior controvérsia em torno dessa tese deve-se ao fato de muitos povos indígenas terem sido expulsos de seus territórios de forma violenta, nos mais diversos processos de expansão territorial que ocorre desde a colonização e que persistem até o dia de hoje, inclusive no período da ditadura militar, antes do advento do nosso atual período democrático, quando houve muitos deslocamentos forçados de povos indígenas pelo avanço de diferentes empreendimentos e estradas. Outro ponto importante a ser destacado é a contrariedade que há em exigir que o povo em questão estivesse pelo menos em juízo pelas suas terras em referida data da promulgação da constituição, sendo que nesse momento os indígenas eram considerados tutelados e não podiam entrar formalmente em juízo a seu favor.


O Julgamento, marcado para o 30 de junho, foi acompanhado por uma vigília de diferentes povos do Levante pela Terra que em dias anteriores se reuniram para entregar aos ministros do STF uma carta onde se solicita que o julgamento aconteça e que o Marco Temporal seja definitivamente descartado (https://apiboficial.org/2021/06/14/carta-dos-povos-indigenas-do-brasil-levante-pela-terra/). Contudo, o julgamento não foi concluído, sendo adiado para o 28 de Agosto, após o recesso parlamentar. Esse mês ganha destaque por comemorar o reconhecimento formal internacional dos direitos indígenas, tendo o próximo 9 de Agosto como dia Internacional dos Povos Indígenas.


Solidariedade dos Mẽbêngôkre com os povos Munduruku e Yanomami


Ao falar em ataques aos direitos tampouco pode omitir-se que, recentemente os Yanomami e os Munduruku sofreram de fato ataques, disparos e incêndios criminosos por parte de garimpeiros que estão cobiçando suas terras e querem intimidar as pessoas que ali vivem para explorar as Terras Indígenas, confiantes na legalização do garimpo que o governo deseja realizar. O povo Mẽbêngôkre-Kayapó manifesta seu repúdio a esses ataques, a toda violência e expressa toda sua solidariedade aos povos Munduruku e Yanomami, "que eles continuem com o pensamento positivo, erguendo a cabeça, eles não estão sozinhos, estamos juntos na luta, quero que os parentes sejam fortes, sejam fortes de fazer denúncia, chamar a atenção para o tipo de violência que o governo está incentivando em todos os patamares. Querem nos vencer para explorar as nossas terras, mas isso não vai acontecer. O nosso pensamento é um só, de lutar, junto com os parentes Munduruku e Yanomami e eles com nós, no senado, na câmara, e até no supremo tribunal federal para vencermos batalha, quero estar junto e vou estar junto nessa luta com os parentes", disse Bepnhoti Atydjare, Coordenador Indígena da Associação Floresta Protegida.


Audiência Pública na Comissão de Legislação Participativa


Dario Yanomami e Bepnhoti Atydare na audiência pública na Comissão de Legislação Participativa. Foto: Dario Yanomami.


Na terça-feira 15, lideranças pertencentes aos povos Mebengokre, Yanomami, Kaingang, e Munduruku, participaram de uma Audiência Pública agendada por Bepnhoti Atydjare durante a reunião de lideranças da maioria das instituições representativas do povo Mẽbêngôkre na aldeia Kriny que ocorreu do 26 ao 28 de abril deste ano. O objetivo da audiência, para as lideranças, foi a necessidade de pedir apoio parlamentar de aliados para trabalhar a favor da extinção da pauta anti-indígena e aquela que ameaça o direito indígena a terra no congresso. Sobre isso, ouça o podcast realizado pela Associação Floresta Protegida com a fala do benadjorwyj Bepnhoti Atydjare durante a audiência: https://florestaprotegida.org.br/biblioteca/60e761b63cb7cd757ed71a5e


Foto: José Rui Gavião @joseruigaviao


Marcada inicialmente para o 22 de Junho, a votação do PL 490 na câmara marcou-se por um intenso episódio de repressão policial, houve disparos de balas de borracha, bombas de gás e de efeito moral em contra dos indígenas que marchavam em direção ao ANEXO II da Câmara, deixando feridos e duas pessoas hospitalizadas. Com o cancelamento da sessão, a votação foi adiada para o dia seguinte e a participação dos indígenas na sessão foi vedada. Lamentavelmente, o projeto acabou sendo aprovado na câmara, passando para aprovação posterior no Senado. Contudo, o movimento indígena organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB -, segue firme e apela em instâncias internacionais, pedindo à ONU providências para que não seja aprovado o PL 490. Veja a nota da sociedade civil em repúdio à violência desse dia: https://apiboficial.org/2021/06/23/sociedade-civil-repudia-violencia-contra-indigenas-em-brasilia/


Foto: Raissa Azeredo


O povo Mẽbêngôkre vai continuar atento e mobilizado, "a gente tem esperança de vencer essa batalha, com certeza não será aprovado o Marco Temporal nem o PL 490, um projeto que ameaça nosso direito, nossa terra nossa, cultura. É por isso que nós vamos continuar lutando e vamos lutando até conseguir o objetivo que nós queremos alcançar de não aprovar o Marco Temporal nem PL 490, nem o PL 191, isso que é nosso dever para cumprir, nosso objetivo é esse", disse Bepnhoti Atydjare, reforçando o compromisso e o comprometimento do povo Mẽbêngôkre nos próximos passos de luta pela extinção das pautas anti-indígena no congresso.


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🎥 Assista a Cobertura ao vivo realizada pelo Coletivo Beture durante as marchas nos dias (22 e 23 de junho) de votação do PL 490 na conta de instagram da @floresta.protegida e do @coletivobeture.


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