Nas profundezas da Terra Indígena Las Casas, o som de um ritual antigo ecoou novamente, unindo as aldeias Tekrejarotire e Ronekore para a celebração do Ngôrepakraj. Conhecido também como "dança das águas" ou "mata-peixe", este ritual ancestral, adormecido por muitos anos, foi recentemente revivido por meio do Projeto Território, Cultura e Autonomia Kayapó, financiado pelo Fundo Amazônia/BNDES e executado pela Associação Floresta Protegida. O objetivo deste projeto é claro: fortalecer a cultura, a autonomia econômica e a gestão sustentável dos territórios Mẽbêngôkre (Kayapó), usando como principal ferramenta de governança a construção do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA).
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O PGTA da Terra Indígena Las Casas foi elaborado e lançado em 2017 e o da Terra Indígena Kayapó foi atualizado a partir do projeto do FAM. Considero um instrumento político de suma importância para a organização dos povos indígenas dentro de seus territórios, o PGTA nasce no âmbito da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas estabelecida a partir do Decreto nº 7747/2012, (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7747.htm), cujo objetivo primordial é assegurar a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e a autonomia sociocultural.
O Ngôrepakraj não é apenas uma cerimônia festiva, mas uma prática de profundo simbolismo cultural e ecológico. Envolvendo o uso do timbó – uma planta cujas propriedades paralisam temporariamente os peixes ao ser jogada no rio –, o ritual é uma manifestação de respeito e sintonia com o ambiente natural. Os homens se preparam na aldeia com cantos e danças tradicionais antes de adentrarem a floresta em busca da planta, enquanto as mulheres constroem abrigos temporários nas margens do rio, onde a comunidade se reúne para pernoitar. Essa divisão de tarefas reflete uma busca pelo equilíbrio entre o feminino e o masculino na dinâmica social Mẽbêngôkre, onde ambos os papéis são essenciais para a harmonia coletiva.
De acordo com Kapranpoi Kayapó, coordenador local da atividade, “o Ngôrepakraj é um costume dos antigos que não era feito há muito tempo (...) É a dança das águas, o mata-peixe. A gente usa ferramentas tradicionais para pegar os peixes e bate timbó. Assim se faz essa festa, que dura muitos dias.” Esse testemunho revela o caráter contínuo e envolvente da celebração, que conecta várias gerações em uma prática que não é apenas de sustento material, mas também de transmissão de conhecimento e fortalecimento espiritual.
Ritual e Resistência Cultural: Um Pacto Ancestral com a Terra
O Ngôrepakraj é uma das muitas práticas indígenas que reafirmam a resistência cultural dos povos originários frente às pressões do mundo envolvente. Em tempos de intensificação da exploração dos territórios indígenas e das ameaças à biodiversidade amazônica, o resgate de rituais como esse é um lembrete poderoso da capacidade de auto-organização e preservação dos Mẽbêngôkre. Mais do que uma simples tradição, ele é uma expressão de autonomia e autodeterminação, uma reafirmação do compromisso Mẽbêngôkre com a terra e as águas que os sustentam.
Ao reviver práticas como o Ngôrepakraj, a comunidade reafirma sua relação com o território de forma profundamente simbólica. A pesca com timbó, além de fornecer alimento, renova os laços espirituais com os rios e florestas. Para os Mẽbêngôkre, o rio não é apenas um recurso, mas um ente vivo com o qual se estabelece uma relação de reciprocidade e respeito. O próprio ritual é, assim, uma manifestação do pacto ancestral entre os Mẽbêngôkre e os elementos naturais, demonstrando que o futuro de seus territórios está intrinsecamente ligado à continuidade de suas tradições.
União e Revitalização Cultural
Realizado entre 27 de setembro e 2 de outubro, o Ngôrepakraj envolveu mais de 100 participantes das aldeias Tekrejarotire e Ronekore. Este foi um momento marcante de união e trabalho coletivo, onde todas as gerações se engajaram ativamente. A dança, os cantos e a preparação do timbó serviram como catalisadores de uma experiência que conecta passado e presente, tradição e contemporaneidade. As gerações mais jovens, ao participar do ritual, tiveram a oportunidade de aprender diretamente com os mais velhos, absorvendo não apenas as técnicas de pesca, mas também os significados mais profundos de pertencimento e continuidade cultural.
A cobertura midiática colaborativa conduzida pela assessoria de comunicação da Associação Floresta Protegida em parceria com os membros do coletivo Beture – Kubekàkre Kayapó, Bepbiereti Kayapó e Nhakangrati Kayapó – destaca-se como um exemplo de protagonismo indígena na comunicação. Através dessa colaboração, as narrativas sobre os eventos, rituais e desafios enfrentados pela comunidade Kayapó são produzidas com um olhar interno, garantindo que as vozes e perspectivas dos próprios indígenas sejam centrais na difusão de suas histórias. Essa iniciativa fortalece a autonomia dos povos Mẽbêngôkre na construção de sua própria imagem na mídia, promovendo uma comunicação que respeita suas tradições, valores e lutas. Além disso, a parceria com o Coletivo Beture amplia o alcance das ações, conectando o público externo com as realidades locais de forma mais autêntica e direta.
Segundo o Cacique Paulo Takakrati, da aldeia Tekrejarotire, o ritual seguiu um processo complexo e colaborativo:
"Ngôrepakraj começou com os guerreiros reunidos na Casa do Guerreiro. Muitos estavam lá, e um dos guerreiros se levantou e pediu para que todos aguardassem, enquanto ele ia buscar aqueles que ainda estavam em casa. Ele passou de casa em casa, chamando os jovens e outros guerreiros para se juntarem na Casa do Guerreiro. Quando todos chegaram, ele disse novamente: ‘Amanhã de manhã, vamos buscar o timbó. O momento está chegando.’
À tarde, saímos para dançar, pois era dia de festa. Depois disso, terminamos a dança e fomos buscar lenha, colocando bastante lenha em frente à Casa do Guerreiro. No outro dia, às quatro da madrugada, nos reunimos para acender a fogueira. Dançamos ao redor do fogo até o amanhecer. Depois disso, começamos o Okajaká, e dançamos a noite toda até o amanhecer, quando finalmente fomos buscar o timbó.
Por volta das 3 ou 4 horas da manhã, juntamos o timbó e deixamos um monte dele na beira do rio. Enquanto esperávamos, continuamos dançando na praia ao som de Ngrenhôdjwyj. Fizemos a dança chamada Nhak e a Kôkô. Em frente aos guerreiros, buscamos o Ngrenhôdjwyj em sua casa, levamos ao rio e ficamos aguardando os outros, que ainda estavam dançando. Só quando os cantos terminaram é que começamos a bater o timbó.
Primeiro, juntamos o timbó em círculos na água, e então o pajé veio com o remédio para matar os peixes. Ele passou o remédio na água, e todos começamos a bater o timbó, cantando e gritando, até o amanhecer, quando os peixes começaram a morrer. As mulheres recolheram os peixes, e as crianças ajudaram. Quando terminamos de bater o timbó, os homens pegaram mais peixes para levar para suas esposas."
Este relato revela a estrutura do evento, mas também sua dimensão integradora. Cada membro da comunidade, independentemente de idade ou gênero, desempenha um papel fundamental na realização do ritual. A dança e os cantos não são apenas atos festivos, mas mecanismos de coesão que garantem a continuidade da memória coletiva.
Desafios Contemporâneos e o Futuro das Tradições
Embora o sucesso do Ngôrepakraj tenha sido evidente, o resgate de práticas tradicionais enfrenta desafios culturais e estruturais. As diferentes relações interétnicas que atravessam a comunidade, com suas demandas e distrações, por vezes dificulta o envolvimento total da comunidade, como se observou no período pré-ritual, quando outros compromissos competiram pela atenção dos jovens. No entanto, é justamente nesse contexto que a revitalização de rituais como o Ngôrepakraj se mostra mais crucial. Ele oferece uma forma de resistência cultural frente às pressões externas e interna, sendo um espaço de reafirmação de identidade e resiliência.
A continuidade do Ngôrepakraj e de outros rituais Mẽbêngôkre depende não apenas do apoio de projetos externos, mas também da capacidade da própria comunidade de se organizar e preservar suas tradições. O sucesso desse evento mostra que, com o fortalecimento da união entre as aldeias e o suporte de iniciativas como o Projeto Território, Cultura e Autonomia Kayapó, a cultura Mẽbêngôkre continua a prosperar. Trazer de volta o Ngôrepakraj é um lembrete de quem é o povo Mẽbêngôkre e o que deve ser protegido. O rio, a floresta e os costumes dos antigos são uma base fundamental de sustentação.
O Ngôrepakraj transcende a esfera do simbólico, funcionando como um verdadeiro ato de resistência e afirmação política. Ao reviver este ritual, os Mẽbêngôkre demonstram que a preservação de suas tradições é inseparável da luta pela autonomia territorial e pela gestão sustentável de seus recursos naturais. Rituais como esse são não apenas uma forma de conectar as gerações, mas também de sustentar a cultura indígena frente às mudanças globais e regionais. Assim, o Ngôrepakraj não é apenas uma dança das águas, mas uma celebração da vida, da terra e da identidade Mẽbêngôkre, que resiste e se renova a cada batida de timbó, a cada canto que ecoa pelas margens dos rios.