No Memorial dos Povos Indígenas, o dia 4 de dezembro de 2024 consolidou-se como um marco histórico na afirmação da autonomia e no aldeamento da gestão ambiental dos territórios indígenas. Nesta oportunidade, mais de 70 lideranças de diversas instituições do povo Mẽbêngôkre se reuniram para celebrar um momento de lançamento de dois pyôko, documentos — o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Kayapó e o Protocolo de Consulta da Terra Indígena Kayapó —, o evento ritualizou um processo que ressignifica a relação entre política e território, ampliando o protagonismo do povo Mẽbêngôkre na condução de seu futuro e aprofundando a democracia. Esses documentos encarnam um movimento de aldeamento da política, em que a governança indígena transcende os limites das aldeias e se coloca como exemplo de resistência e inovação no contexto global.
Bepnorotti Atydjare e Bebo Kayapó. Foto de Ireprynganhti Kayapó - Coletivo Beture
Fruto de cerca de nove anos de diálogo intenso, mobilizações locais e articulações regionais, o PGTA e o Protocolo de Consulta emergem em um cenário de intensificação das pressões sobre os territórios indígenas, sejam elas causadas pela exploração predatória tal como desmatamento e garimpo ou pelos impactos das mudanças climáticas. Nesse contexto, os documentos se afirmam como declarações de soberania e unidade, consolidando as terras indígenas como territórios estratégicos onde práticas ancestrais de gestão fortalecem a governança indígena e sua autodeterminação. O evento reafirmou o protagonismo cultural e político do povo Mẽbêngôkre, mostrando que suas práticas de cuidado com o território resistem às adversidades e redefinem os paradigmas geopolíticos.
O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é um instrumento estratégico elaborado pelos povos indígenas para planejar o uso sustentável e a proteção de seus territórios, de acordo com suas necessidades, valores e tradições. Ele define ações e diretrizes para áreas como biodiversidade, cultura, saúde, atividades produtivas e governança. Já a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída em 2012 após uma extensa consulta, é a política pública que estabelece as bases para a elaboração dos PGTAs, visando “(...) garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural, nos termos da legislação vigente”.
A atualização do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Kayapó foi fruto de um extenso e meticuloso processo conduzido no âmbito do projeto "Território, Autonomia e Cultura Mẽbêngôkre", executado pela Associação Floresta Protegida com financiamento do Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES. A iniciativa contou com o apoio do Instituto Socioambiental e da Vale S.A., mas sua força motriz foi o protagonismo das próprias comunidades Mẽbêngôkre da TI Kayapó e diversas organizações, que, em um esforço coletivo com precedente do legado de resistência territorial do povo Mẽbêngôkre ao longo dos séculos, mobilizaram mais de 80 aldeias.
Esse documento é fruto da articulação entre diversas instituições representativas do povo Mẽbêngôkre. Organizações como a Associação Tuto Pombo, Associação Abemoká Kranhmenhti, Pore Kayapó, Angrôkrere, a Secretaria Especial de Cultura Mẽbêngôkre, a Ba-Y Cooperativa Kayapó de Produtos da Floresta, Piokrere, Pykôre, o Instituto Paiakan e aAssociação Floresta Protegida, uniram esforços, conhecimentos e experiências para a construção desse documento fundamental para o futuro das comunidades e a proteção do território.
Sandro Takwyry Kayapó. Foto de Beptemexti Kayapó - Coletivo Beture
Entre outras lideranças que se destacaram nesse processo, como Bepnorotti Atydjare, Sandro Takwyry Kayapó também destacou-se como um dos principais articuladores e porta-vozes no processo de construção do PGTA da Terra Indígena Kayapó, desempenhando um papel crucial como ponte entre as comunidades indígenas e as diversas instituições envolvidas. Representante da Associação Angrokrere e do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), Sandro esteve presente em todas as etapas do processo, conduzindo diálogos, fortalecendo a confiança das comunidades e garantindo que as vozes locais fossem ouvidas. “Foi preciso fazer todo um processo de consulta, levar informação para dentro das comunidades, adquirir a confiança e mostrar que esse trabalho é importante para a defesa do território”, relatou ele, destacando o caráter desafiador e profundo do trabalho. Com nove anos de discussões e mobilizações, o PGTA consolidou-se como uma ferramenta de defesa estratégica, graças a lideranças como Sandro, que enfatizou: “Foram cerca de nove anos para elaborar esse plano, mas hoje temos um documento que é uma ferramenta de defesa e segurança para os povos indígenas, principalmente para as futuras gerações.” Sua atuação foi fundamental para superar divisões históricas e unificar o povo Mẽbêngôkre.
Patkàre Kayapó, Nhakmakoro Kayapó e Sandro Takwyry Kayapó. Foto de Irepreynganhti Kayapó - Coletivo Beture.
Esse esforço colaborativo superou barreiras históricas, reunindo um povo diverso em torno de um objetivo compartilhado: a defesa do território, a preservação da cultura e a garantia de um futuro sustentável. O resultado não foi apenas um plano estratégico, mas um marco de união e autodeterminação. O PGTA consolidou um compromisso coletivo que reafirma as tradições Mẽbêngôkre, fortalece a governança sobre a terra e projeta um futuro onde a soberania do território está enraizada na força e no protagonismo de seu povo.
Tânia Paiakan Kaiapó. Foto de Ireprynganhti Kayapó
O lançamento do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e do Protocolo de Consulta da Terra Indígena Kayapó, realizado no Memorial dos Povos Indígenas em Brasília, foi uma celebração histórica, política e cultural. O evento reuniu lideranças Mẽbêngôkre, representantes de instituições públicas e privadas, e parceiros da sociedade civil, reafirmando o compromisso coletivo com a governança indígena e a preservação da Amazônia.
A Cooperativa Kayapó de Produtos da Floresta (CooBaY) apresentou uma exposição de artesanatos e produtos da floresta, destacando a criatividade e a capacidade produtiva sustentável das aldeias Mẽbêngôkre. O coquetel que acompanhou o evento criou um espaço de diálogo e troca entre as lideranças indígenas e os representantes de diversas organizações, evidenciando as alianças construídas ao longo do processo de elaboração dos documentos.
A cerimônia oficial, mediada por Tânia Paiakan Kaiapó e Sandro Takwyry Kayapó, contou com um momento de grande significado: a entrega solene do livro do PGTA e do Protocolo de Consulta pelos caciques das diferentes aldeias a representantes de instituições parceiras, públicas e privadas. Essa ação simbolizou o reconhecimento do processo coletivo que deu origem aos documentos e a necessidade de colaboração para sua implementação.
A Terra Indígena Kayapó, situada no centro-sul do Pará, no extremo sudeste da Amazônia, abrange 3.284.005 hectares de florestas e cerrados. É parte de um conjunto maior de sete Terras Indígenas que formam o território tradicional do povo Mẽbêngôkre. Esse território inclui Badjônkôre, Baú, Capoto/Jarina, Kararaô, Kayapó, Las Casas e Menkragnoti, somando aproximadamente 11 milhões de hectares. Embora o PGTA trate especificamente da TI Kayapó, as relações de parentesco, rituais e alianças políticas entre essas terras são profundas, reforçando a unidade necessária para proteger a “grande casa” Mẽbêngôkre e garantir o bem-estar das futuras gerações.
Os relatos dos mais velhos lembram que os Mẽbêngôkre ocuparam a região do Xingu a partir de meados do século XIX, fugindo dos conflitos com os não indígenas e buscando preservar sua cultura e autonomia. Esse deslocamento deu origem a aldeias históricas, como Gorotire e Pykatoti, próxima a aldeia hoje conhecida como Kubẽkrãkênh. Durante esse período, os Mẽbêngôkre enfrentaram divisões internas e, mais tarde, novos conflitos com os brancos que chegavam em busca de borracha, castanha e pele de animais.
A chegada dos não indígenas trouxe doenças e deslocamentos forçados, levando a inúmeras perdas para o povo Mẽbêngôkre. Em 1938, o Estado brasileiro reconheceu pela primeira vez a ocupação tradicional dessa região, mas os limites eram reduzidos. Mesmo após a criação da Reserva Florestal do Gorotire em 1961, com cerca de 18 mil km², a pressão externa continuou, intensificada pela corrida do ouro durante as décadas de 1970 e 1980. O Estado, em vez de proteger, facilitou a invasão por garimpeiros, o que gerou destruição e conflitos.
A luta pela demarcação da Terra Indígena Kayapó culminou em 1985, quando, após uma ocupação do garimpo Maria Bonita pelas lideranças Mẽbêngôkre da aldeia Gorotire com o protagonismo de Paulinho Paiakan, o governo reconheceu a área através do Decreto nº 91.244/85. Esse reconhecimento, porém, veio com concessões, permitindo a continuidade do garimpo. Somente em 1991, após anos de mobilização e resistência, o território foi homologado com 3.284.005 hectares pelo Decreto Presidencial nº 316.
Reconhecida pelo Estado brasileiro em 1991, após intensas mobilizações do povo Mẽbêngôkre, a TI Kayapó é um território vivo que abriga locais de importância histórica para o povo e uma biodiversidade única com uma área de transição entre o cerrado e a floresta amazônica. No entanto, ela está localizada em uma das regiões sob maior pressão antrópica na Amazônia, no Arco do Desmatamento, onde redes criminosas ligadas à exploração ilegal de ouro e madeira ameaçam constantemente sua integridade. A complexidade logística de proteger essa vasta área é imensa. Muitas aldeias só são acessíveis por via aérea, e a manutenção das bases de vigilância para conter invasões demanda recursos constantes. Apesar dessas ameaças, o povo Mẽbêngôkre tem resistido, combinando vigilância territorial com estratégias inovadoras de governança e manejo sustentável.
O lançamento do PGTA simboliza um novo capítulo dessa história de resistência. Assim como a demarcação da terra em 1991 representou um marco na luta pelo reconhecimento territorial, o PGTA consolida a gestão autônoma e sustentável desse espaço. Ele reafirma o papel do povo Mẽbêngôkre como guardião não apenas de seu território, mas de um ecossistema que beneficia o Brasil e o mundo. A TI Kayapó desempenha um papel crucial na proteção da maior faixa de floresta contígua na Amazônia oriental e na preservação do Corredor de Sociobiodiversidade do Xingu. Ela conecta ecossistemas vitais e é essencial para a regulação do regime de chuvas e o equilíbrio climático global.
Mapa elaborado por Igor Ferreira para o documento do PGTA da TI Kayapó.
O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Kayapó é um documento estratégico que organiza a visão de futuro do povo Mẽbêngôkre em cinco eixos principais, cada um refletindo desafios, prioridades e a íntima relação entre cultura, território e governança.
O eixo Cultura e Conhecimento é o alicerce da identidade Mẽbêngôkre, orientando ações voltadas para a preservação dos saberes ancestrais, como as narrativas orais, os rituais e o uso da sua línguas. Ele propõe o fortalecimento da educação intercultural, conectando as novas gerações às tradições e, ao mesmo tempo, ao mundo exterior.
O eixo Território, Ambiente e Infraestrutura trata da proteção e manejo sustentável do território, que é visto como um bem coletivo e sagrado. Ele propõe estratégias para reforçar a vigilância contra invasões, além de melhorias na infraestrutura das aldeias, como acesso à energia limpa, saneamento básico e comunicação. Esse eixo também reconhece o papel da TI Kayapó na mitigação das mudanças climáticas e na manutenção dos serviços ambientais essenciais ao planeta.
No eixo Atividades Produtivas e Geração de Renda, o plano valoriza práticas econômicas sustentáveis que reforçam a autonomia financeira das comunidades sem comprometer os recursos naturais. O manejo de castanha, mel, peixe e artesanato surge como alternativas viáveis, alinhadas às tradições e à preservação do território.
O eixo Saúde propõe um modelo integrado que respeita os saberes tradicionais — como o uso de plantas medicinais e os trabalhos de pajés e parteiras —, sem abrir mão do acesso à medicina ocidental. Essa abordagem promove o equilíbrio entre as práticas ancestrais e os serviços modernos, fortalecendo o bem-estar comunitário. "O PGTA vem para valorizar os remédios da floresta, mas também nos dá o direito de acessar os hospitais e a farmácia quando precisamos", destaca Bebô Kayapó, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Kayapó Pará.
Por fim, o eixo Governança e Fortalecimento Político é o núcleo que sustenta todo o PGTA. Ele prioriza o fortalecimento das organizações indígenas e a formação de lideranças, garantindo que as decisões sobre o território sejam tomadas pelos próprios Mẽbêngôkre. Este eixo também estabelece diretrizes para o diálogo com atores externos, por meio do Protocolo de Consulta, assegurando que qualquer projeto ou iniciativa que impacte o território respeite o direito à consulta prévia, livre e informada.
Cacique Mundico. Foto de Beptemexti Kayapó - Coletivo Beture.
O Protocolo de Consulta da Terra Indígena Kayapó é um instrumento jurídico e político construído coletivamente pelo povo Mẽbêngôkre para assegurar que qualquer ação, projeto ou política que possa impactar seu território seja discutida de forma prévia, livre e informada com as comunidades. Fundamentado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o documento estabelece os critérios e procedimentos que devem ser seguidos por empresas, governos e outras instituições antes de implementar iniciativas na região.
A elaboração do protocolo foi um processo de ampla participação, refletindo as demandas e os valores das mais de 80 aldeias que compõem a TI Kayapó. Ele estabelece etapas claras, desde a apresentação completa e acessível das propostas, com tradução para a língua Mẽbêngôkre, até o tempo necessário para que as comunidades discutam internamente e tomem decisões coletivas. Essas diretrizes garantem que as comunidades tenham controle sobre os processos que afetam seu território e modo de vida.
O Protocolo de Consulta é um manifesto de autodeterminação, ele assegura que as decisões sejam tomadas pelas próprias comunidades, respeitando seus tempos, modos de vida e valores, reafirmando a soberania indígena sobre o território e abrindo um caminho de aprofundamento da democracia e de fortalecimento da governança participativa para outros povos originários.
Karagre Kayapó. Foto de Beptemexti Kayapó - Coletivo Beture